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terça-feira, 20 de outubro de 2009

O PENSAMENTO DE NIETZSCHE

O pensamento de Nietzsche


Nietzsche em 1861



Em defesa da Cultura

Friedrich Nietzsche estava se recuperando em Basiléia, na Suíça, de uma doença que o atacara na Guerra Franco-Prussiana de 1870 (ao prestar serviço de assistência aos feridos do exército alemão), quando chegou-lhe uma terrível notícia. Em março de 1871 a população de Paris havia se rebelado contra o governo derrotado. Pior, os operários estavam pondo fogo nos grandes prédios públicos e depredando as obras de arte espalhadas pela capital francesa, entre elas a bela Coluna de Vendôme. Era a Comuna de Paris que havia sido proclamada no dia 18 de março de 1871, que se tornaria um dos mais violentos levantes populares da Europa do século XIX.

Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera, refugiou-se na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o célebre helenista e historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista, que igualmente estava desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a arte ocidental estava ameaçada. Séculos de beleza estavam em vias de ser totalmente devastados pelo vandalismo das massas parisienses revoltadas.

Os episódios da Comuna de Paris foram fundamentais para o acirramento das posições políticas de Nietzsche. Onde Karl Marx viu um momento de bravura popular, Nietzsche identificou o surgimento de uma nova barbárie que era preciso deter a qualquer custo. A Comuna será, pois, o ponto de partida para uma série de escritos que ele desenvolveu ao longo dos próximos vinte anos seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas, dos anti-socialistas, e contra todo e qualquer tipo de pregação que visasse a igualdade, tornando-o um apologista da distinção.






Nietzsche como Anticristo

O ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-se com o seu "O Anticristo" (Der Antichrist), mas foi inicialmente exposto na A genealogia da moral (Zur Genealogie der Moral), de 1887. Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil que havia, através do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e dominante dos aristocratas. A origem desse processo, segundo Nietzsche, remontava à aos tempos da Palestina ocupada pela raça romana, raça de senhores. Os judeus, impotentes em poder livra-se deles, terminaram por aperfeiçoar a psicologia do ressentimento provocando uma inversão dos valores. Tudo aquilo que era "débil", "humilde", "medíocre", eles apresentaram como "bom", enquanto palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram vistas como "mal". O resultado desse trabalho de sapador, feito por séculos de pregação cristã, foi o enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos".

A rebelião dos escravos

A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir com a escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o cristianismo - tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio impotente, um "ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária". O produto desse ressentimento foi fazer com que os escravos, a "raça inferior e baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e nobre em algo pecaminoso. Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a abjeta covardia de dar o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de perdão.

Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o Império Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma espécie de "febre das catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi minada até o mais profundo de si própria pela mentira da igualdade das almas; e se a crença na prerrogativa da maioria faz e fará revolução - é ao cristianismo que devemos sua difusão. São os juízos de valores cristãos que qualquer revolução vem transformar em sangue e crime. O cristianismo é uma insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho dos pequenos tornado baixo".

Cristianismo, religião dos fracos (tela de Mantegna)



A volta às energias aristocráticas

Portanto, os nossos conceitos de bem e de mal eram estratagemas dos derrotados, que fizeram a façanha de substituir os valores superiores da nobreza. Dessa forma retiraram dela, enternecendo-a com rogos de piedade, a seiva necessária para aplicar uma política de mão firme para conter esse moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia emergido na Comuna de Paris de 1871. O socialismo não passava de um "cristianismo degenerado [...] o anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]". Era preciso, pois, primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de energia aristocráticas, aplicar uma política da impiedade, onde somente o mais nobre e o mais viril fosse tomado em consideração.

"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam possíveis tipos mais elevados, tipos superiores - a desigualdade dos direitos é a condição necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo: "Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista, os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no seu pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a injustiça nunca reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais".

Nietzsche e a História

Nietzsche rompeu também com a relação entre a Filosofia e a História que havia sido estabelecida por Hegel, entendida esta última como uma crônica da racionalidade. Considerava que "o excesso de história" parecia "hostil e perigoso à vida", limitador da ação humana, inibindo-a. Devia-se ousar, avançar perigosamente para o ilimitado, porque a racionalização histórica levava o homem a "perder-se ou destruir seu instinto fazendo com que ele não ouse soltar o freio do 'animal divino' quando a sua inteligência vacila e o seu caminho passa por desertos. O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e perde a confiança em si..." terminando por fazer com que "a extirpação dos instintos pela história transforma os homens em outras tantas sombras e abstrações."

Instinto contra a Razão

Nietzsche recolocou claramente o confronto outrora posto pelos românticos quando opunham os instintos - geralmente entendidos como uma manifestação da pureza e autenticidade humana - à razão, símbolo do utilitarismo cinzento e materialista.

Opunha-se, como conseqüência, à idéia de que os acontecimentos históricos ensinavam os homens a não repeti-los, defendendo a teoria do eterno retorno, de remota inspiração na filosofia pitagórica e na física estóica, que compreendia a aceitação de periódicas destruições do mundo pelo fogo e seu ressurgimento. Desta forma, não só tudo poderia acontecer novamente como tudo poderia ser tentado outra vez.

Em busca do super-homem

A idéia da necessidade da formação de uma nova elite - não contaminada pelo cristianismo e pelo liberalismo - e que ao mesmo tempo os transcendesse, acometeu Nietzsche desde muito cedo. Pode-se dizer que já pensava assim nos seus tempo do internato em Pforta. Já naquele tempo mostrou-se obcecado pela formação de uma seleta falange intelectual responsável pela transmutação de todos os valores, cuja obrigação e dever maior era a proteção de uma cultura superior ameaçada pela vulgaridade democrática.

Desde jovem fascinou-se pela elite.



O culto ao gênio

A teoria do surgimento futuro de um novo indivíduo que conjugasse o abandono dos valores do bem e do mal com um ateísmo engajado, foi, de certa forma, a evolução decorrente do culto ao gênio professado pelos primeiros românticos. A teoria do gênio vai ser retomada por Arthur Schopenhauer que irá expô-la num apêndice acrescentado ao seu O mundo como vontade e representação, na reedição de 1844, onde, num certo momento associa o homem genial à dimensão do Monte Blanc, que, do cimo das suas neves elevadas, contempla olimpicamente o resto da humanidade, mantendo-se fiel apenas " ao fim objetivo" ... "uma meta a ser atingida, mesmo que seja um equívoco, mesmo que seja um crime".

Thomas Carlyle, um reconhecido admirador do romantismo alemão, também se abeberou da idéia do gênio, adotando-a na sua concepção da história como sendo o palco exclusivo da ação do herói, do grande homem, que num só gesto ou ato altera o destino de milhões. Ela - a história - não passaria, pois, de um grande gesto heróico, onde a personalidade magnífica domina inteiramente o cenário da sua época. E, é claro, a figura do super-homem já estava esboçada anteriormente em Novalis, Heine e Goethe e, mais remotamente ainda, num dos diálogos de Platão.

A influência de Dostoievski


Dostoievski previu a revolução niilista

Uma das influencias mais significativas que Nietzsche recebeu foi-lhe inspirada pela leitura de Fédor Dostoievski (1821-1881). O escritor russo foi o primeiro, sob o enfoque cristão, a detectar o perigo da emergência do homem - idéia, ou do homem-deus enaltecido pelos românticos, desde os tempos de Fichte. A moderna sociedade liberal e progressista ao atacar os valores religiosos , sem se dar conta do perigo, abria uma brecha nos valores estabelecidos por onde aflorava o terrível homem-idéia, o indivíduo ateu e materialista que devotava sua vida a favor de uma causa, normalmente de inspiração niilista. Ele era um perigoso abnegado e um obcecado que rompia com os valores da sociedade, criando um universo ético próprio, só dele, totalmente afastado do cristianismo.

Nos romances de Dostoievski ele, este indivíduo perigoso, aparecerá no personagem do jovem estudante Raskolhnikov, em Crime e castigo; na do intelectual Ivan Karamazov de Os irmãos Karamozovi; e no príncipe Stavroguin no romance Os demônios. Todos eles são descritos como esses homens-idéia gerados pela modernidade que Dostoievski abominava e a quem ele reservou, em todos as novelas citadas, um final infeliz, na medida em que os considerava uns "perdidos de Deus".

Pois foi justamente este homem-idéia, esse ateu de novo tipo, que Dostoievski via com angústia e apreensão, que se tornou o arquétipo do novo homem moderno, é que foi o herói de Nietzsche. Ele, e somente ele, teria a coragem de doravante assumir a realidade de um mundo onde Deus estava morto. Mas isso estava longe de significar uma vida sem sentido como muitos moralistas e homens de fé acreditavam. Bem ao contrário! O terrível dito de advertência de Dostoievski de que "se Deus esta morto, tudo é permitido", que o russo entendia como uma chamamento à licença, à desordem e ao crime, Nietzsche entendeu como uma liberação. A possibilidade do indivíduo construir o seu destino não mais tolhido por qualquer regra, por qualquer impedimento, dilatava os horizontes para extensões impensadas.


A liderança do super-homem

E era exatamente nisso que estava o significado inaudito dos tempos vindouros. Devia-se aceitar na totalidade um mundo onde uma nova ordem deveria fatalmente imperar, na qual as novas regras, acima do bem e do mal, seriam impostas por essa figura exponencial que era o super-homem. (Übermensch), Este titã moderno, liberto de toda e qualquer ladainha cristã-humanitária, desprezaria qualquer sentimento de arrependimento, varrendo de dentro de si a fraqueza da piedade . Como Nietzsche deixou dito no "Humano, demasiado humano"(Menschliches, Allzumenschliches): "Se o homem consegue adquirir a convicção filosófica da necessidade absoluta de todas as ações e, ao mesmo tempo, da total irresponsabilidade destas, se consegue converter essa convicção em carne e em sangue , então desaparecerá também este resto de remorso de consciência".

O manifesto de Zaratustra


O profeta iraniano que inspirou Nietzsche
A singularidade do pensamento ideológico e filosófico de Nietzsche é que foi exposta por meio de um grande poema: Assim falou Zaratustra (Also spracht Zarathustra), iniciado em 1883. Nele o filósofo-poeta se apresenta atrás da roupagem do profeta iraniano Zaratustra ou Zoroastro (que viveu ao redor de 600 a.C. e que compôs o Zend-E-Avesta, dividido em cinco Gathas, ou canções proféticas), anunciando a boa nova da chegada do super-homem (após ter passar anos no alto de uma montanha, o profeta, exilado numa caverna, para onde havia se retirado a fim de meditar, tinha como companhia apenas uma águia e uma serpente).

Dali Zaratustra desce para vaticinar a vinda daquele que irá superar o homem: o super-homem. "Que é o macaco para o homem?" - pergunta o profeta àqueles a quem encontra na praça do mercado da cidade, e responde: "Um motivo de riso e dolorosa vergonha. E é justamente isso que o homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa vergonha". E, mais adiante, diz ao povo que "o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um abismo"... o homem é ao mesmo tempo "uma transição e um ocaso". Uma nova era, de superação de antigos tempos está para vir "... não existe Diabo, nem inferno", diz Zaratustra "a tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto não receies nada!"

As metamorfoses do espírito

Os homens, segundo Zaratustra, teriam passado por três metamorfoses do espírito: foram primeiramente camelos, por carregarem em si as culpas do mundo, o sentimento do pecado ensinado pelos religiosos. Depois tornaram-se leões na medida em que se rebelaram contra esse passado de fadigas e culpas ignominiosas, onde seus instintos puros eram condenados como pecaminosos e, finalmente, assumiram a forma de crianças, na esperança de renascer numa nova moralidade, distinta da anterior, livres dos preceitos estabelecidos pelo bem e pelo mal.

O futuro é das águias

"Lembrem-se: Quanto mais alto planamos, menores vemos são as pessoas que não conseguem voar". - Nietzsche

Mas esse devir radioso, liberto da moral passada, não é um lugar reservado a todos "[...] Na árvore do futuro, construamos o nosso ninho; para nós os solitários, águias deverão trazer alimento em seus bicos! E, como fortes ventos, queremos viver acima deles, vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes. E tal como o vento forte, quero algum dia, soprar no meio deles [da canalha] e, com o meu espírito, tirar o respiro ao seu corpo: assim quer meu futuro". Zaratustra detesta "os pregadores da igualdade" que, segundo ele, não passam de " tarântulas e bem ocultas almas vingativas". Concluindo não querer "ser confundido com esse pregadores da igualdade. Porque, a mim, assim falava a justiça: os homens não são iguais".

A morada do super-homem é nas alturas (cena dos Alpes)



O super-homem está no devir

O profeta não vê as características do super-homem entre os integrantes da antiga nobreza. Eles também já foram contaminados pelo liberalismo ao fazerem concessões políticas ao populacho (no caso, as primeiras leis sociais e de previdência aprovadas por Bismarck no IIº Reich alemão). Portanto, o super-homem ainda está por nascer e será identificado por sua integral e total devoção aos princípios exclusivista que defende, pelo seu caráter de aço!

Não se fará reconhecido por nenhum atributo genético, por nenhuma descendência aristocrática, mas sim pela consciência e poder que irá naturalmente transbordar da sua pétrea personalidade. A missão dele será partir "as velhas tábuas". Ele formará "uma nova nobreza, que se oponha a toda a plebe e a toda a tirania e que escreverá novamente em novas tábuas a palavra 'nobre".

Zaratustra esperançoso olha para a frente: "A minha águia está acordada e, como eu, presta homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia para a nova luz. Sois os animais certos para mim; eu vos amo. Mas faltam-me, ainda, os meus homens certos!"

Maquiavel e Nietzsche


Maquiavel, o teórico do amoralismo

Tal como Maquiavel encerrava O príncipe na expectativa de que surgisse na Itália dilacerada do seu tempo uma figura magnífica, despida de preconceitos, que lançasse mão de quaisquer recursos, mesmo que inescrupulosos, para unificar o país ameaçado pelos bárbaros, Nietzsche-Zaratustra esperava o mesmo na emergência de um super-homem.

Só que os temores da época de Nietzsche eram outros. Os novos bárbaros que assustavam o Ocidente que ele pretendia defender eram as idéias democráticas, o socialismo (que para ele eram sinônimos) o feminismo, o mau gosto vulgar da nascente cultura de massas, que devia ser exorcizado. Portanto, chegou mesmo a considerar - em nome da boa arte - a necessidade da escravidão. Toda a beleza apolínea da arquitetura grega antiga e sua imorredoura qualidade estética havia sido produto de uma sociedade escravista. O Pártenon poderia dever muito à iniciativa de Péricles e ao gênio de Fídias, mas também à chibata do feitor!




Nietzsche e a Melhores Biografias

"Vida de Frederico Nietzsche" ou somente "Nietzsche", do francês Daniel Halévy, cuja primeira publicação é de 1909, tendo uma reedição ampliada em 1944. Na edição de Lisboa tem 409 págs.
"Nietzsche" de Ivo Frenzel, é uma das excelentes edições de livro de bolso, com gravuras e fotografias dos principias locais onde o poeta e pensador viveu. Edição alemã de 1966.
"Friedrich Nietzsche" (Friedrich Nietzsche. Biographie) de Curt Paul Janz, em 4 volumes, surgida em Viena em 1978. Trata-se de uma das mais recentes, extensa e detalhada, biografia do pensador. Divide-se em "Infância e juventude" (vol. I); "Os dez anos de Basiléia" (vol. II); "Os dez anos como filósofo errante"(vol. III); "Os anos de naufrágio"(vol 4). Só existe uma tradução em espanhol da Alianza de Madri, e provavelmente é a mais alentada de todas, tendo mais de mil páginas.
"Nietzsche: el aguila angustiada. Una biografia"(Der ängstliche Adler. Friedrich Nietzsche Leben, Munique, 1989), de Werner Ross, tradução espanhola da Paidós, de 1994. Trata-se de uma complementação dos dois tomos escritos por Heidegger, enfocando a vida mesclada à obra do pensador. É também monumental, com 865 páginas, e extremamente agradável de se ler.



O programa do super-homem


César Borgia (1475-1507), o tirano exemplar
O grande programa do super-homem, portanto, estava pronto. Tratava-se de uma abrangente reforma que procurava dar um senso de propósito a uma existência na terra abandonada pela deidade. Os interesses de poucos deverão ter proeminência sobre todos os demais, a força do espírito sobrepujará a fraqueza, a saúde do espírito sucederá qualquer tibiez, a guerra dos espíritos substituirá a paz. Como conseqüência lógica disso, as necessidades dos indivíduos excepcionais terão sempre precedência contra o espírito nivelador estabelecido pela gravitação imposta pela mediocridade. O mundo filisteu, dominado pela pasmaceira da vida rotineira deverá dar lugar à audácia, à dança, e à destreza intelectual. A de viver-se perigosamente.

A revolta contra o tédio

A pregação de Zaratustra foi entendida por George Steiner como uma desconformidade, entre tantas outras, com a vida tediosa da sociedade burguesa fin de siècle, onde o mundo aventureiro e belicoso do aristocracia cedia espaço ao utilitarismo frio, prático e calculista, do homem burguês ocidental. Uma época absolutamente banal na qual a sociedade científico-positivista via-se crescentemente dominada pelo espírito liberal-igualitário, que impedia o afloramento da individualidade singular, a emergência do grande homem, da personalidade fora de série, que o profeta vinha pressagiar. Um estado de espírito que encontrou sua melhor expressão no dito do poeta Théophile Gautier: "Prefiro a barbárie ao tédio!"

A vontade de poder

Se Schopenhauer, um pessimista assumido, desenvolveu a teoria de que a vida não tinha nenhum sentido racional e que todos nós éramos apenas expressões da vontade, uma vontade de viver instintiva, animal, cósmica, que estava entranhada na natureza e em nós, Nietzsche irá atribuir à vontade uma outra dimensão. Influenciado pelas teses de Charles Darwin (1809-1882), como a luta pela vida e a sobrevivência do mais apto, ele considerou a vontade (Wille)como uma força positiva sobre o Homem, uma energia que mobiliza-o, fazendo-o ultrapassar os obstáculos e vencer os desafios que se lhe antepõem. Daí reduzir quase tudo na existência à luta pela vontade de poder (Wille zur Macht).

A necessidade vital que o homem tem de sempre lançar-se compulsivamente sobre os demais objetos da natureza e sobre o resto da sociedade visando o seu domínio, estaria assentada na antiga premissa de que "cada um de nós deseja, no possível, ser o senhor de todos os homens, e preferivelmente deus". Esta vontade de poder é vital e amoral, independe de critérios éticos, é uma espécie de pulsão incontrolável que faz com que o homem enfrente todas as vicissitudes para saciá-la (concepção que foi recentemente reaproveitada por Michel Foucault na sua "microfísica poder", e com a visão de que a sociedade é um conflito permanente entre poderes, que transcendem a simples luta política partidária e ideológica, englobando as políticas clínicas, da saúde pública, dos sanatórios e das prisões).

M.Foucault, influenciado por Nietzsche



A política de domínio

Isto conduziu a que Nietzsche aceitasse e enaltecesse qualquer política de domínio, acreditando-a inevitável. No Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse), concluída em 1886, e que é de certa forma, a complementação final em prosa do Zaratustra, afirma que "a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração".

A vontade dos mais fortes

Evidentemente que esta manifestação de vontade de poder, em sua plenitude, só pode ser exercida pelos mais fortes. Aos fracos cabe a obediência respeitosa ou aceitar o extermínio silencioso. Esta figura vitoriosa, altaneira, que impõe sua vontade sobre tudo e todos, não pode ser constrangida pela moral comum dos homens vulgares, dos preceitos seguidos pelas maiorias, ou pelo imperativo categórico kantiano, que desejava tornar toda e qualquer ação numa lei universal.

O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor conduta e não espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o que eu digo e não o que eu faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o consideram duro e insensível, quiçá até desumano, pois estes são os atributos do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo particular e só tem gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece ou satisfaz.

Despreza "o covarde, o medroso, o mesquinho o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso". Ao homem comum, ao fraco em geral, só lhe resta a serventia de ser um degrau de apoio sobre o qual a figura de escol deverá calcar em sua ascensão os cimos mais elevados de uma existência superior.

Uma contra-utopia

Nietzsche de certa forma esboçou, com sua prosa impressionista, o que poderíamos considerar como uma contra-utopia ou uma utopia direitista. Na sociedade futura que imaginou, a harmonia seria estabelecida apenas entre os que se consideravam iguais - a nova nobreza formada pelos super-homens - que regeriam uma comunidade rigidamente hierarquizada, despida da moral comum, dominada pela "besta loura" que exerceria sua autoridade baseada numa impiedosa vontade de poder.

A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais profunda e radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e documentos que se posicionaram pela e igualdade e liberdade que vieram à luz na cultura ocidental, desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista de Marx e Engels, até as leis sociais da sua época.

"Eu sou dinamite!"


A rocha do Lago Silvanaplate, que inspirou Nietzsche

O próprio Nietzsche nunca deixou de ter consciência de que suas posições, assumidamente radicais, teriam conseqüências terríveis nos anos vindouros. Que para ele seriam tomados por uma reação contra-revolucionária de dimensões espantosas. No Ecce Homo, por exemplo, a sua autobiografia publicada somente em 1908, oito anos após a sua morte, reconhece: "Conheço a minha sorte. Alguma vez estará unido ao meu nome algo de gigantesco - de uma crise como jamais haverá existido na terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que até esse momento se acreditou, exigiu, santificou. Eu não sou um homem, sou dinamite".

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